Estreio hoje um novo formato de textos e publicações no blog que nada terão a ver com o mundo dos esportes (desculpem, mas não devo voltar a escrever esse tipo de relatos mais). Os textos que publicarei serão sobre cultura pop e literatura. Especificamente, a princípio, estão programados comentários de livros que li (ou reli) neste 2023, e que terão uma chamadinha especial: a tag "Leitura da Vez".
O que decidi trazer como [re]estreia do Manu Loves It Loud é a leitura que fiz nesse começo de outubro, e que foi uma escolha proposital por conta do Halloween, o Dia das Bruxas (ou para os nacionalistas, o Dia do Saci) festejado no dia 31.
Então, vamos ao que viemos!
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Há algum tempo adquiri "A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça e Outros Contos" do escritor norte-americano Washington Irving, da Editora Wish, diretamente do site, pouco depois da publicação. Acabei combinando a compra com outros 2 livros de temáticas afins: "Sweeney Todd - O Barbeiro Demoníaco da Fleet Street" de Thomas Peckett Prest e "The Five: As Vítimas de Jack, O Estripador" de Hallie Rubenhold. (Por sinal, deixarei no fim desta postagem links do site da editora para, caso se interessem, poderem fazer a mesma compra combinada, ganhando 7% de desconto em cada um dos três livros. [1])
Minha resolução de fim de ano em 2022 era ler mais livros do que comprar. A pilha de compras é sempre muito maior que a de lidos para todos que gostam de ler, mas eu nem precisei contabilizar para saber que eu estava exagerando nas aquisições. Algo precisava ser feito e uma delas era para cada livro novo, eu precisaria, pelo menos, ler dois da pilha antiga. Um dia, eu conseguiria, pelo menos, deixar a balança de lidos e comprados, equilibrado.
Além disso, havia os "sub-motivos", que acredito serem também louváveis: o primeiro deles é que eu faço doutorado e estudo, desde 2010, academicamente falando, o autor J. R. R. Tolkien. Não só leio muito seus escritos, como basicamente o faço desde os meus 14 anos, quando tomei contato com a sua primeira grande obra, "O Senhor dos Anéis". Com isso tudo, me tornei parte (ainda que "fantasmagórica", pois não sou "conhecida" por aí) do fandom do autor.
Eis que, no ano passado, em um contexto que não precisa ser revelado, uma pessoa me disse a seguinte frase:
"Leitores de Tolkien conhecem muito de Tolkien, mas muito pouco - ou nada - do resto".
Essa foi a razão reforçada para a tomada de decisão de ler mais, porque não só concordei com a "autora da frase/comentário", tomando como um fato que eu ainda não tinha me atentado, como era também uma realidade minha, desde 2015, para ser mais precisa. Esse ano em questão, foi marcado pela minha entrada no Mestrado e eu havia lido somente textos do Tolkien ou de filósofos e teóricos desde o projeto de pesquisa até a escrita da dissertação. Para descansar a cabeça, da tensão que é escrever um trabalho assim, eu reli os sete livros de Harry Potter (pela terceira ou quarta vez).
Concluí o Mestrado em 2017, fui dar aulas em escolas públicas, montei o meu projeto de doutorado para outro programa de pós, decidi prestar a prova em 2019, e com a aprovação me preparei para dar início no caos pandêmico que foi 2020. Não havia lido mais nada por "recreação" (fora Harry Potter) em um período de 5 anos (mas havia comprado muitos livros).
Foi então que propus mudar de atitude em 2023: selecionei algumas "leituras de recreação", sem deixar - é claro! - a peteca cair dos livros teóricos para a escrita da tese.
Uma terceira razão, foi simplesmente que tal atividade me espantaria das redes sociais. Eu e todos nós, precisamos otimizar o nosso tempo livre com coisas leves, porém as redes sociais não são escape promissor nem uma alternativa útil.
Além da ideia de me colocar em conhecimento de outras coisas além de Tolkien (embora alguns livros, tenha por sua causa que acabei comprando e lendo, neste ano), posso dizer que a resolução de 2024 já está desenhada e é uma só: ler mais para me desmantelar, de vez, das leituras fúteis e informações desnecessárias do dia-a-dia: confusões, fofocas de subcelebridades, opiniões patéticas e revoltas políticas, propiciadas por acompanhar redes sociais cheias de gente imbecil (sobretudo, o Twitter, agora X).
Com os motivos revelados (para quem não me acompanha no Instagram), vamos ao que achei do livro "A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça e Outros Contos".
A edição da Wish é comemorativa de 200 anos, tradução de Camila Fernandes, preparação de Cristina Lasaitis, revisão de Karine Ribeiro e Úrsula Antunes, e capa e projeto gráfico de Marina Ávila.
A ilustração da capa é creditada a Arthur I. Keller [1906]. O miolo, em papel pólen bold 90g em preto e creme bem claro, é ricamente ilustrado (como a arte da foto ao lado, creditada à Caroline Murta [2020]), e diversos outros artistas.
O livro é em capa dura com verniz, fitilho em cetim preto, folhas de guarda em preto e branco e corte colorido das páginas (pantone vermelho).
Para quem comprar na própria editora[2], é possível receber mimos, como um marcado com a arte da capa, e postais em referência ao conto principal de Irving:
Há dois textos iniciais antes dos contos: um prefácio, intitulado "Washington Irving e as histórias que nascem da História" de Oscar Nestarez, pesquisador e escritor de literatura de horror, e colunista das revistas Galileu e Vício Velho. Neste, temos algumas informações do autor, reconhecido como o primeiro homem de letras dos EUA, além de proeminente historiador da época. É referido as suas influências e as referências às impressões cotidianas do país, sobretudo em relação à Guerra da Independência dos EUA, bem como as fábulas e lendas europeias - sobretudo alemã e holandesas.
O segundo texto é uma introdução, de Jim Anotsu - formado em letras pela UFMG além de escritor, roteirista e tradutor - que versa sobre "A questão racial na época de Irving" apontando nuances de racismo nos contos. Confesso, que tais recortes interpretativos seriam imperceptíveis se não tivessem sido mencionados por Anotsu, de tão sutis que me pareceram.
Ambos, já dão a letra sobre "A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça": a adaptação de Tim Burton, lançada em 1999, com Johnny Depp, Cristina Ricci, Christopher Walken e Miranda Richardson, entre outros, no elenco, não tinha basicamente nada a ver com o conto de Irving.
As únicas semelhanças entre as duas mídias - escrita e audiovisual - são, além do título, os nomes dos protagonistas, o nome do local (chamado Sleepy Hollow) e a lenda de um "cavaleiro sem cabeça" sendo um ex-soldado da guerra da independência escondido na floresta, como fio condutor dos enredos.
A versão de Burton é mais, digamos, "robusta". Há uma trama que envolve investigação, sedução, magia negra e pacto com o submundo. É, de todo modo, muito mais sangrenta e mais fantasiosa que o conto de Irving que, não mete tanto medo, e o ápice, com o aparecimento fugaz do cavaleiro sem cabeça, é só no fim do conto.
No filme, Depp encarna Ichabog Crane que viaja para Sleepy Hollow para investigar uma série de mortes de habitantes proeminentes da vila, e que seria obra de um tal de Cavaleiro Sem Cabeça. No livro, Ichabog viaja para o local para exercer seu ofício de educador. O personagem com Depp é super potencializado, tomando uma personalidade muito além da descrita no conto: é um homem intelectualizado e supersticioso tal a fonte, mas tem um passado traumático com um pai inquisidor e religioso, que descobrimos ter torturado a sua mãe - uma mulher de espírito livre e "mágico" - numa Donzela de Ferro.
Ambos os Ichabogs - do livro e do filme - competem atenção de Katrina Van Tassel, também amplificada no filme como uma figura de bruxa.
Como dito, no filme, algo estranho acontece em Sleepy Hallow: vítimas assassinadas, cuja causa mortis é sempre a decapitação por machados. As pessoas do local acreditam piamente que o ex-combatente de guerra é o autor, saindo a procura incessante de sua cabeça perdida.
Esse ponto não é o motivo do enredo da história de Irving, mas de fato é mencionado que a lenda local diz que o soldado hessiano[A] teria perdido a cabeça por um tiro de bala de canhão.
O aparecimento do cavaleiro se dá diversas vezes no filme, inclusive com a conclusão para toda a trama e os assassinatos, enquanto no conto, o Sem Cabeça persegue Ichabog no final, deixando em suspenso o que teria ele feito com o pobre educador. Então é aquela dica: se você está esperando algo que prenda o fôlego tal qual o filme, possivelmente se decepcionará.
Dito isso, devo deixar registrado - para fazer justiça a ambos - que, apesar de diferentes, tanto o conto, quanto a adaptação cinematográfica atende às propostas que se colocaram e são excelentes em seus respectivos modos. O conto, por ter a atmosfera comum dos registros provenientes da oralidade e o filme, por trazer uma trama bem construída e uma resolução arrebatadora - além de uma fotografia irretocável e um baita elenco que faz toda e completa diferença (e é uma coisa raríssima, hoje em dia, #prontofalei).
Os contos adicionais são bem bacanas e listo um pequeno comentário para cada um:
📜"Rip Van Winkle", apesar de ter uma influência ou inspiração em um conto alemão, me chamou bastante atenção na menção do mito indígena, no pós-escrito, dotando a história de Irving de certa "exclusividade" em relação ao período estadunidense. Assim como "A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça", esse registro parte de um coletor de histórias, o Sr. Dietrich Knickerbocker. Soa como um recurso de Irving para conferir credibilidade às histórias, com um quê de explicativas e realidade, apesar de, no entanto, tratar-se de um personagem fictício.
📜"O Noivo Espectral (e a Cozinha da Estalagem)" me lembrou outro longa de Tim Burton, desta vez "A Noiva Cadáver" [2005], embora as semelhanças não estariam tão claras. Além dos nomes holandeses - Van Dort, no filme e Von Landshort, no conto - a ideia de um casamento perpassa pela lembrança.
Até onde pesquisei, não encontrei o que me levasse ao conto de Irving, mas sim a um conto popular russo-judaico do século XVII chamado "O Dedo"[B].
É o meu conto favorito dos 4 presentes na edição, embora não tenha nenhuma relação questão sobrenatural: o leitor sabe o tempo todo o que se passa e os suspense é experimentado por uma parte dos personagens.
📜 "O Diabo e Tom Walker" se tornou o meu segundo favorito imediatamente que terminei a leitura. Claramente, inclusive pelo título, é um conto faustiano, fechando muito bem a seleção do Irving e nos colocando a conhecer mais sobre esse expoente autor norte-americano. Dois adendos, interdependentes, antes de me encaminhar para o fim.
Tanto Tom Walker quanto Rip Van Winkle tinham mulheres bem "cascas-grossas" e sofriam nas mãos delas! Embora especificamente as personagens femininas nestes dois contos tivessem sido descritas de modo como se fossem impossíveis, brutas e raivosas, justificando que os maridos se sentissem felizes em ficar livres delas, em "O Noivo Espectral", a descrição das tias da herdeira de Katzenellenbogen não descritas com certo cinismo em relação à proteção e até censura da jovem sobrinha em relação aos homens, de um modo geral.
Sobre isso, me parece mais claro um machismo velado do que passagens de racismo declarado. Em "O Diabo e Tom Walker", por exemplo, o diabo é descrito como "grande e escuro", mas não como uma pessoa negra e o texto chega até a amenizar os traços africano ou indígena, conforme o excerto parece indicar:
"(...) Ficou extremamente surpreso, pois não tinha visto nem ouvido ninguém se aproximar, e ainda mais perplexo ao observar, tanto quanto a penumbra crescente permitia, que o desconhecido não era negro nem indígena. É verdade que usava um traje rústico, meio indígena, e um cinto ou faixa vermelha em torno do corpo, mas seu rosto não era negro nem acobreado, mas escuro, sujo e manchado de fuligem, como se estivesse acostumado a trabalhar entre fogueiras e forjas. Tinha cabelos pretos e espessos que saltavam da cabeça em todas as direções, e levava um machado no ombro." [IRVING, 2020, página 156]
A título de comparação, a descrição da esposa de Tom é a que se segue:
"(...) A mulher de Tom era uma megera alta, de temperamento feroz, língua ferina e braço forte. Sua voz se erguia com frequência numa guerra de palavras com o marido, e o rosto deste às vezes mostrava sinais de que os conflitos não se limitavam às palavras. Ninguém se arriscava, contudo, a interferir (...)" [IRVING, 2020, página 154]
As figuras femininas são descritas de duas formas: ou megeras controladoras de fracos maridos, ou mulheres belas e jovens, dadas a mandos das mais velhas.
Mas esse não é, nem de longe, o cerne do nosso propósito aqui. A questão propriamente é não entrarmos em polêmicas interpretativas ou chaves-de-leitura cujo anacronismo bate à porta e a tentação do revisionismo histórico nos torne zumbis dependentes.
O que importa é se recomendo a leitura, sobretudo para quem procura contos clássicos do gênero gótico. E a resposta é sim, com toda a certeza.
Mas se você espera algo muito voltado para o suspense ou horror, para curtir devidamente o mês do Halloween, talvez seja prudente outro livro que não este. Talvez algum do Stephen King ou mais extremo, como Clive Barker, sejam mais indicados.
Segue o ranking de notas padronizados em 5 pergaminhos:
A edição no todo é belíssima, possui uma tradução acertada e fluida, sem nada soando estranho ou inadequada. A revisão nesse sentido me parece muito bem feita - algo que precisa ser exaltado, pois acreditem, uma revisão ruim tem acontecido até em grandes editoras. Em tempo: um livro não deve ser somente bonito, com capa dura, arte exclusiva, lombada padronizada e blablablá. Livros são artigo de luxo no nosso país, os impostos são altíssimos e a gente sabe que os insumos são uma "desculpa" das editoras para cobrarem pequenas fortunas de suas edições. A gente aceita e compreende tudo, desde que a qualidade seja condizente com o valor pago. Por isso, um critério apurado na diagramação e na tradução é o carro-chefe, mas a revisão, tão desprezada, tão desvalorizada e com prazos tão curtos (como ouvi dizer), não pode ser um trabalho displicente nem omisso. Só porque é uma etapa ingrata do editorial, o profissional não pode se fazer de vítima (e eu sei que muitos revisores não são), nem a equipe editorial deve fazer da etapa, sugestivamente (ou não), a de menor importância.
Não se trata de nenhum caso da Wish, pelo menos, nenhuma edição que possuo da editora. Embora seja relativamente pequena e jovem - a equipe, encabeçada pela Marina Avila começou no mercado editorial há apenas 10 anos, trazendo conto de fadas e depois histórias raras para os leitores por meio de projetos de "crowdfunding" - financiamentos coletivos - para a publicação de seus títulos. Agora, a editora faz parte do grupo Darkside, outra editora com títulos no catálogo bem bacanas aqui no Brasil.
Espero que tenham gostado da reestreia do blog e o novo formato de assuntos. Peço desculpas pelo texto longo. Os próximos não precisarão de tantas explicações e serão diretamente sobre os livros que for comentar.
Até a próxima "Leitura da Vez"!
Abraços afáveis!
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[A] Soldados hessianos eram provenientes dos territórios alemães Hesse-Kassel e Hesse-Hanau. Eles serviram na Guerra da Independência dos EUA como auxiliares do exército inglês.
[B] Trata-se de uma história de fantasmas ashkenazi, isto é, que possui trágicas concepções com eventos que ocorreram no mundo real. O folclore original que inspirou a história de Burton possuem origens em pogroms russos da virada do século, segundo os quais os casamentos acabavam em tragédias.
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[1] Links da Editora Wish para cada livro em separado:
O combo pode ser selecionado com dois ou os três destes títulos, logo abaixo de cada item, como eu mencionei, saindo 7% de desconto em cada um. Enjoy!
[2] Para quem gosta de comprar na Amazon (e com o benefício do frete grátis por ser assinante da Amazon Prime), "A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça e Outros Contos" está um pouco mais caro que na editora, mas pode ser uma via para o kindle, mais em conta: versão digital.
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